quinta-feira, 14 de maio de 2020

A cadeira elevatória e a humanidade

A propósito da "solidariedade estranha" que surgiu com esta pandemia, e sobre a qual vou tentar organizar ideias um dia destes, e porque soube que aquilo que há 10 anos foi uma conquista agora é lei, resolvi vir aqui contar a história do (já famoso) Zé da Boina e sua cadeira.

Era uma vez um Homem, careca, giraço, inteligente, culto, trabalhador, honesto e com uma preocupação quase patológica em ser um Homem Justo. Era ele o Zé da Boina (para a malta do facebook), Meu Pai (para a malta que me conhece), e o Zé Mota (para a malta que o conhece a ele).

Ensinou.me o tal "da Boina", que o que há de mais precioso nesta vida é o Respeito pelo próximo, seja ele quem for.

Aprendi desde muito cedo que as raças, os credos e/ou as cores políticas, são apenas uma parte do que nós somos como seres Humanos.
Tentou ele explicar-me também que a condição humana é de uma enorme precaridade, que tudo se desmancha com enorme facilidade, que quem hoje está bem, amanhã pode estar tão mal que morre e pronto acabou-se.
Por isso o mais importante desta vida é mesmo viver com Humanidade!

Ora, o tal Zé (Pai e com boina porque tem frio na careca) encontrou-se numa condição mais precária da sua existência por doença (AVC) e deixou de conseguir subir as escadas do andar onde vive (3ºandar).
Então, solícitos filhos, bem educados, e tendo aprendido que a autonomia é uma das coisas importantes para um ser humano, chamam uma empresa para estudar a forma de colocar um "auxílio" nas escadas.
Que seja tecnicamente exequível, que não incomode ninguém, e cuja despesa os nossos pais suportam na íntegra.
Acresce ainda a proposta do tal senhor "da Boina" que deveria ser claro que qualquer morador no prédio em caso de necessidade poderia usar o dispositivo que se viesse a colocar.

A empresa, depois de estudar a situação, propõe que se coloque uma cadeira elevatória.
E então avisam-se os solidários senhorios e os  restantes habitantes do prédio, coloca-se uma carta a fazer o aviso da data de colocação previsível, pedindo desculpa pelo incómodo.
Tínhamos obviamente o acordo verbal prévio de todos eles, ou não estivessemos a falar de pessoas humanistas e solidárias.

Aí, eles, os senhorios e restantes condóminos, fazem uma reunião e...tornam-se ex-humanistas e ex solidários e decidem que Não autorizam a montagem da cadeira!
Motivos? Nada que eu perceba, os envergonhados alegam motivos técnicos inexistentes, os restantes usam como argumento apenas que o prédio é Meu e ninguém vai colocar nada no Meu prédio, e a cadeira nem sequer é bonita! E o senhor que é deficiente quando quiser sair de casa chama uma ambulância!  Heil!

Aí, tal como me ensinaram desde pequena, nada a temer, os tribunais existem para ver quem tem razão, certo?
Primeiro passámos por alguns advogados que nos explicaram que se o condomínio não aceita...hum...se calhar não há muito a fazer.
Mas, lá vieram duas advogadas inspiradas e um reforço positivo do arquitecto da câmara que disse:  bom lá legal não é, mas é imoral e se vocês podem (que é como quem diz têm dinheiro), lutem porque a maior parte das pessoas nessa situação não o pode fazer.

Vamos então ouvir o parecer de um juiz (no caso em apreço, uma juíza), parte não interessada na questão e que a analisa aos olhos da lei.

Analisada a questão , a ordem que surge da providência cautelar é simples "nenhum cidadão" pode ser impedido, de colocar um acesso à sua casa e não não é de ambulância que se vai ao cinema ou jantar fora (isto ela não disse mas sei que pensou:-))
Coloque-se a cadeira!

E aí deu-se inicio a uma novela que valeu a pena seguir!!!
Gritos, insultos, maus tratos, idas à TV, já não sei descrever tudo mas sei que a cadeira foi colocada com guarda policial e que depois foram muitos anos (oito) em luta de tribunais com recursos atrás de recursos que (porque podemos) lá fomos suportando até ao final, alguns milhares de euros depois.

Esta pandemia, e as questões de solidariedade que tem colocado lembraram-me este episódio, fica assim registado neste meu diário de bordo abandonado há tanto tempo.



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