quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Portugal é assim



Segunda-feira passada, a meio da tarde, faço a A-6, em direcção a Espanha
e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manhã, refaço o
mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para lá como para
cá, é uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve
incursão pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um
trânsito cerrado, composto esmagadoramente por camiões de mercadorias
espanhóis. Vinda de um país onde as auto-estradas estão sempre cheias, ela
está espantada com o que vê:
- É sempre assim, esta auto-estrada?
- Assim, como?
- Deserta, magnífica, sem trânsito?
- É, é sempre assim.
- Todos os dias?
- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.
- Mas, se não há trânsito, porque a fizeram?
- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam
que o desenvolvimento era isto.
- E têm mais auto-estradas destas?
- Várias e ainda temos outras em construção: só de Lisboa para o Porto,
vamos ficar com três. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, não
há nenhuma: só uns quilómetros à saída de S. Paulo e outros à chegada ao
Rio. Nós vamos ter três entre o Porto e Lisboa: é a aposta no automóvel, na
poupança de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.
- E, já agora, porque é que a auto-estrada está deserta e a estrada
nacional está cheia de camiões?
- Porque assim não pagam portagem.
- E porque são quase todos espanhóis?
- Vêm trazer-nos comida.
- Mas vocês não têm agricultura?
- Não: a Europa paga-nos para não ter. E os nossos agricultores dizem que
produzir não é rentável.
- Mas para os espanhóis é?
- Pelos vistos...
Ela ficou a pensar um pouco e voltou à carga:
- Mas porque não investem antes no comboio?
- Investimos, mas não resultou.
- Não resultou, como?
- Houve aí uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha
Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas não resultou.
- Mas porquê?
- Olha, é assim: a maior parte do tempo, o comboio não 'pendula'; e, quando
'pendula', enjoa de morte. Não há sinal de telemóvel nem Internet, não há
restaurante, há apenas um bar infecto e, de facto, o único sinal de
'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espaço do comboio. Por
isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferroviária do Estado
perde centenas de milhões todos os anos.
- E gastaram nisso uma fortuna?
- Gastámos. E a única coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos às três
horas e meia que demorava a viagem há cinquenta anos...
- Estás a brincar comigo!
- Não, estou a falar a sério!
- E o que fizeram a esses incompetentes?
- Nada. Ou melhor, agora vão dar-lhes uma nova oportunidade, que é encherem
o país de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda há umas
ameaças de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.
- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?
- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, **561 km**.
Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou não.
- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?
- Não, pára em várias estações: de cima para baixo e se a memória não me
falha, pára em Aveiro, para os compensar por não arrancarmos já com o TGV
deles para Salamanca; depois, pára em Coimbra para não ofender o prof.
Vital Moreira, que é muito importante lá; a seguir, pára numa aldeia
chamada Ota, para os compensar por não terem feito lá o novo aeroporto de
Lisboa; depois, pára em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficará o futuro
aeroporto; e, finalmente, pára em Lisboa, em duas estações.
- Como: então o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois
volta para trás e entra em Lisboa?
- Isso mesmo.
- E como entra em Lisboa?
- Por uma nova ponte que vão fazer.
- Uma ponte ferroviária?
- E rodoviária também: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos
os dias para Lisboa.
- Mas isso é o caos, Lisboa já está congestionada de carros!
- Pois é.
- E, então?
- Então, nada. São os especialistas que decidiram assim.
Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a
fasciná-la.
- E, desculpa lá, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a
auto-estrada está deserta...
- Não, não vai ter.
- Não vai? Então, vai ser uma ruína!
- Não, é preciso distinguir: para as empresas que o vão construir e para os
bancos que o vão capitalizar, vai ser um negócio fantástico! A exploração é
que vai ser uma ruína - aliás, já admitida pelo Governo - porque, de facto,
nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o
justificar.
- E quem paga os prejuízos da exploração: as empresas construtoras?
- Naaaão! Quem paga são os contribuintes! Aqui a regra é essa!
- E vocês não despedem o Governo?
- Talvez, mas não serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com
Espanha foi a oposição, quando era governo...
- Que país o vosso! Mas qual é o argumento dos governos para fazerem um TGV
que já sabem que vai perder dinheiro?
- Dizem que não podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.
- O que é isso? Ir em TGV de Lisboa a Helsínquia?
- A Helsínquia, não, porque os países escandinavos não têm TGV.
- Como? Então, os países mais evoluídos da Europa não têm TGV e vocês têm
de ter?
- É, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.
Fizemos mais uns quilómetros de deserto rodoviário de luxo, até que ela
pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para trás:
- E esse novo aeroporto de que falaste, é o quê?
- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de lá do rio e a uns **50
quilómetros** de Lisboa.
- Mas vocês vão fechar este aeroporto que é um luxo, quase no centro da
cidade, e fazer um novo?
- É isso mesmo. Dizem que este está saturado.
- Não me pareceu nada...
- Porque não está: cada vez tem menos voos e só este ano a TAP vai cancelar
cerca de 20.000. O que está a crescer são os voos das low-cost, que, aliás,
estão a liquidar a TAP.
- Mas, então, porque não fazem como se faz em todo o lado, que é deixar as
companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um
pequeno aeroporto de periferia? Não têm nenhum disponível?
- Temos vários. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um
hub ibérico, fazendo a trasfega de todos os voos da América do Sul para a
Europa: um sucesso garantido.
- E tu acreditas nisso?
- Eu acredito em tudo e não acredito **em nada. Olha** ali ao fundo: sabes
o que é aquilo?
- Um lago enorme! Extraordinário!
- Não: é a barragem de Alqueva, a maior da Europa.
- Ena! Deve produzir energia para meio país!
- Praticamente zero.
- A sério? Mas, ao menos, não vos faltará água para beber!
- A água não é potável: já vem contaminada de Espanha.
- Já não sei se estás a gozar comigo ou não, mas, se não serve para beber,
serve para regar - ou nem isso?
- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos até instalarem o
perímetro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a
agricultura não tem futuro: antes, porque não havia água; agora, porque há
água a mais.
- Estás a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e não serve para
nada?
- Vai servir para regar campos de golfe e urbanizações turísticas, que é o
que nós fazemos mais e melhor.
Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os óculos escuros e virou-se
para me olhar bem de frente:
- Desculpa lá a última pergunta: vocês são doidos ou são ricos?
- Antes, éramos só doidos e fizemos algumas coisas notáveis por esse mundo
fora; depois, disseram-nos que afinal éramos ricos e desatámos a fazer
todas as asneiras possíveis cá dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e
enlouqueceremos de vez.
Ela voltou a colocar os óculos de sol e a recostar-se para trás no assento.
E suspirou:
- Bem, uma coisa posso dizer: há poucos países tão agradáveis para viajar
como Portugal! Olha-me só para esta auto-estrada sem ninguém!

Miguel Sousa Tavares

E não passaram nos hospitais megalómanos, que existem em paralelo com urgências caóticas, cuidados primários que não existem e etc por aí fora

sexta-feira, 27 de maio de 2011

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

E mais reformas...


Há muito tempo que não vinha aqui.

Os dias passam a galope, sem deixar tempo para uns pensamentos mais calmos, com pelo menos tempo para os organizar por temas de forma a não soar insano...

Pois claro que continuo a trabalhar numa instituição de saúde, e sou cada vez mais o técnico de saúde "à beira de um ataque de nervos" que deu inicio a este blogue.

Nos últimos tempos (anos?) temos vindo a assistir à degradação progressiva dos serviços públicos de saúde, mais ainda, acho que todos temos noção de que existe uma queda cada vez mais evidente na qualidade dos cuidados prestados e, dos que os prestam.

Agora temos a nova debandada de reformas, que nos vão "roubar" os elementos que estão nas melhores condições de passar o conhecimento, os "mais velhos", estamos a falar de pessoas entre os 55 e os 65 anos.
Nalgumas culturas não muito longínquas, "O mais velho" é respeitado pela sua sabedoria, porque na maior parte das vezes os mais velhos acertam, parece que têm magia, adivinham, daí tornarem-se "Os mais sábios", aqueles que gostamos de ouvir a opinião, alguns já sem o conhecimento tecnológico da geração mais jovem, mas com a sabedoria de quem já observou situações similares muitas vezes.

O tempo ensina.

Todos nós conhecemos a diferença entre o aprendido no livro e o saber da experiência feito, que se alapa à nossa memória porque tem associações visuais, auditivas, olfactivas, sensitivas e emocionais que a tornam inesquecível.

A experiência ensina.

Então como é possível não perceber a valiosidade dos nossos "mais velhos"?

Em medicina esta "passagem de testemunhos", principalmente dos erros cometidos, é de extrema importância, são conhecimentos que nos são transmitidos com "sentidos".

Asneiras que não vamos fazer, exemplos a copiar na resolução de problemas, possibilidades de sermos críticos...enfim uma montanha de coisas que, quem como eu teve a sorte de ter alguns Muito Bons colegas "Mais velhos", com quem acho que posso dizer que aprendi quase tudo, e com quem sei ter aprendido coisas muito importantes como o assumir da ignorância (o que ajuda a não dizer muitas asneiras), ser humilde, pensar nos doentes como pessoas, e outras coisas, mais práticas como: se não gostas muito de estudar arranja uma companhia de trabalho estudiosa, se preferes estudar arranja um colega trabalhador, é tudo uma questão de gestão de recursos humanos e bom senso, não somos todos iguais e a vantagem está na diversidade.


Bem, esta conversa toda para dizer que me angustia a falta de capacidade dos nossos governantes para perceberem a gravidade de deixarem fugir a camada formativa dos nossos hospitais...já há alguns anos que vamos assistindo a esta corrida à reforma, que junta a questão económica à desilusão.

É só um desabafo...caros colegas, já tenho e vou ter, saudades vossas!